Entre os dias 7 e 11 de novembro foi realizado em Marabá, Pará (Brasil) o VI Encontro pela Terra e o Território “Superando fragmentações, tecendo redes de vida”, organizado pelo LEMTO (UFF-Brasil), IPDRS (Bolivia) e a UNIFESSPA (Brasil).
Nos próximos meses estaremos compartilhando materiais sobre nosso encontro. Por enquanto compartilhamos com vocês a “Carta da Amazônia”, uma voz construida coletivamente que sintetiza algumas das reflexões do encontro e nossas preocupações sobre o momento atual no Brasil e no resto da América Latina.
Carta em pdf: https://drive.google.com/open?id=1pdG-SctpJGbD2EU6pOfH2cNur8P1uJlF
CARTA DA AMAZÔNIA
Nós, comunidades, povos tradicionais e professores-pesquisadores do Brasil e da América do Sul reunidos na Amazônia, na cidade de Marabá, entre os dias 8 e 11 de novembro no VI Encontro Terra e Território – Superando Fragmentações, Tecendo Redes de Vida – tendo em vista nossas responsabilidades diante da vida e da humanidade, vimos a público manifestar nossas preocupações, fruto de 4 dias de intensa reflexão, frente aos desafios que se nos apresentam no novo cenário político da conjuntura brasileira, latino-americana e mundial.
Manifestamo-nos desde a Amazônia, região que por suas características metabólicas e socioculturais tem grande relevância para os destinos da vida em nossa casa maior, o planeta, e para a humanidade. E o fazemos a partir de um rico acervo de conhecimentos forjado por etnias, povos e nacionalidades que habitam a região há mais de 10 milênios, enriquecidos com a contribuição de camponeses que vieram de vários lugares do Brasil e do mundo habitar nossas várzeas e terras-firme, e em diálogo com cientistas que sabem que não há vida sem conhecimento e, por isso, dialogam com essas tradições de conhecimento. Portanto, estamos longe de um vazio demográfico, como colonialmente se pensa de fora nossa região e, ao contrário, estamos diante de uma região diversa, densa em horizontes mais justos para a vida. Tudo isso nos coloca responsabilidades, nos obriga e autoriza a alertar a comunidade brasileira, latino-americana e internacional para as ameaças que nos cercam.
O Sul e o Sudeste do Pará, de onde nos manifestamos nesse momento, vem sendo, há 40 anos, objeto de um processo social e econômico marcado por extrema violência e devastação, tendo como eixo a mercantilização da vida pelos negócios do agro que forjam uma concentração fundiária alarmante e violenta, seja pelos negócios da água que mudam os sentidos dos rios e afundam comunidades, seja ainda, pela maior planta de extração mineral em operação no mundo que, para levar ferro para os principais centros industriais, saqueia riquezas retirando as condições de existência para inúmeras comunidades e povos tradicionais. Pela produção do carvão vegetal, pela formação de pastagens e pela expansão de monocultivos, esse complexo de devastação e violência consumiu a mais densa floresta do mundo. Quanto açaí, quanta bacaba, quanto taperebá, quanta pupunha, quanta castanha, entre outros muitos frutos, deixaram de alimentar tanta gente para garantir a sanha de acumulação de capitais irresponsável com os destinos da vida humana e não-humana. Os efeitos perversos desse processo social, sentidos principalmente pelos povos originários indígenas, pelos quilombolas e pelos camponeses da região, não se restringem a eles e se propagam pelo continente e pelo mundo pela função que a floresta amazônica cumpre no equilíbrio metabólico do nosso planeta, sobretudo pela água que, por evapotranspiração, irriga amplas regiões do país, do continente e do mundo. Não são poucas as cidades não-amazônicas que já acusam falta de água para abastecimento, pela devastação produzida com tanta violência contra a floresta Amazônia e seus povos.
Alertamos para as ameaças que se colocam a partir do novo cenário político brasileiro em que as novas autoridades falam abertamente em fazer regredir os compromissos ambientais assumidos até aqui pelo Brasil, como o abandono dos Acordos de Paris, assim como as abertas ameaças de etnocídio contra os povos indígenas e quilombolas, ao não reconhecer seus modos de vida, inclusive suas formas comunitárias, numa visão reducionista da riqueza da espécie humana ao querer, colonialmente, reduzir a vida social ao indivíduo, à propriedade privada e à ideia de que tudo se resume a compra e venda para ganhar dinheiro. O cenário também preocupa com a descabida ameaça de tipificação de movimentos sociais, como o movimento dos trabalhadores rurais sem terra, o movimento indígena e quilombola, como terroristas, demonstrando que a função social da propriedade e os instrumentos de justiça social que se construíram em nossa jovem democracia, encontram-se abertamente ameaçados. Os assentados da reforma agrária que, com muita luta, sangue e lágrimas conseguiram conquistar 85 milhões de hectares de terra em todo o território nacional e adubam a terra de justiça, encontram-se no centro da ameaça. O mesmo se estende a todas as comunidades e povos tradicionais que, ainda que insuficientemente, vinham começando a se fazerem conhecidos e respeitados em sua dignidade de grupos diferenciados de que, em sua maioria, também têm a prática de fazer uso comum da terra, da água, enfim, das condições necessárias de reprodução da vida. Enfatizamos, também, a importância do cuidado, que mantém, não somente a vida, mas os modos de existir de cada comunidade. As mulheres sempre tiveram papel primordial na reprodução e no cuidado com a vida das novas gerações, papel esse que, apesar de tamanha centralidade, ao proporcionar a própria existência da comunidade, sempre foi invisibilizado. As violências cotidianas ou pontuais, físicas ou emocionais, que atingem as mulheres e se somam às dificuldades de um caminho já árduo, precisam ser combatidas por todos, não só por elas. A questão de gênero precisa ser reconhecida em seu peso e precisa ser debatida com os jovens em escolas, por exemplo, sem que aqueles que trazem o debate possam sofrer perseguição ideológica. Nesse sentido, para que as mudanças de caminho perpassem toda a sociedade, é necessário que os jovens façam parte do debate.
Reiteramos a necessidade de políticas de estímulo e valorização dos jovens que, no entanto, só terão sentido, com um horizonte ético para a vida em liberdade, igualdade e respeito à diversidade étnico-cultural. Preocupa-nos, também, a visão militarizada do enfrentamento da segurança pública, num país cujos números alarmantes de assassinatos, mais 62 mil no ano de 2017, têm como principais vítimas os jovens pobres e negros das periferias urbanas, onde cresce a nefasta presença de milícias com o envolvimento, não raramente, de membros das forças policiais. Racismo e machismo devem ser encarados como são, como problemas profundamente estruturais, que influenciam nos caminhos que seguimos, caminhos esses que devemos reconstruir para seguir vivendo.
Alertamos, ainda, para as ameaças que pairam contra todas as práticas de educação popular desses povos e comunidades que colocaram processos de formação no centro de suas buscas e, para isso, sempre apoiaram e interagiram com o sistema público nos diferentes níveis de ensino. Em várias regiões do país surgiram experiências exitosas de relação entre o ensino público e os interesses dos grupos sociais em luta por justiça e dignidade que, no momento, encontram-se sob a ameaça de aprofundamento de uma irresponsável visão privatista já em curso. A educação do campo, a educação escolar indígena e todas as interações entre comunidades, movimentos e a universidade, que honram valores que respeitam a dignidade dos diferentes grupos sociais, encontram-se sob a ameaça de uma visão política da educação que a quer como negócio e doutrinação, mesmo quando se diz “escola sem partido”.
Enfim, não só a Amazônia vem sendo alvo de um processo de desenvolvimento que quebra o envolvimento das comunidades e povos em seus territórios de vida. A presença entre nós do povo mapuche que habita ao sul do Chile a da Argentina, do povo wayuu e añuu que habita a ocidente da Venezuela, assim como de colombianos, bolivianos e peruanos nos fez ver que está em curso um violento processo expropriatório que busca desterritorializar esses povos e comunidades para saquear os minérios de seu subsolo, extrair o gás e o petróleo de suas entranhas, explorar seus solos com monoculturas para exportação, enfim, para nos manter na condição de supridores de matérias primas para os centros geográficos mais dinâmicos do sistema mundo capitalista que nos habita há 500 anos!
Convocamos a todos e todas a nos mantermos alertas diante dessas ameaças. Contamos com a solidariedade de todos e todas sabendo de nossas responsabilidades de mantermos a diversidade da vida com a diversidade de nossas práticas culturais. Pela Vida, pela Dignidade e pelo Território, assim se manifestaram nas ruas os povos indígenas e camponeses da Bolívia e do Equador, ainda nos anos 1990. Mais que desenvolvimento queremos Vida em Plenitude (Suma Qamaña, Sumak Kausay …), o que implica respeitar diferentes modos de estar no mundo. Assim é a vida, assim é a humanidade: diversa! Vida Longa aos Mapuche, aos Wayuu-Añuu, aos Xavante, aos Gaviões, aos Faxinalenses do Paraná, aos Agricultores e Agricultoras Ameaçados pela Barragem em Guapiaçau (Rio de Janeiro), aos quilombolas do Bracuí, às Assentadas e Assentados do Assentamento Agroecológico do Contestado (MST-Paraná), às Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto da Bahia, às Marisqueiras de Sergipe, às Assentadas de Alagoas, às Catadoras de Mangaba de Sergipe, às Benzedeiras do Paraná, aos Assentados e Assentadas do Assentamento Palmares, assentamento 1 de março e 26 de março (MST-Pará). Somos como a água que não se quebra, que se conforma às circunstâncias, infiltra-se, movimenta-se com as marés em diálogo com a Lua, emergindo como a fonte que dá vida e tem o céu como limite, para voltar à Terra e alimentar nossa mesa e nossos sonhos!
Marabá, Amazônia, 11 de novembro de 2018.
1- Amantino Sebastião de Beija – Faxinalense –PR.
2- Ana Maria dos Santos – Benzedeira do MASA – PR.
3- Ana Rute Rocha Santos – Marisqueira de Sergipe – SE.
4- Charles Trocate – MST/PA.
5- Cosme Rite – Indígena Xavante – MT.
6 – Eduardo Salazar – Assentamento Palmares – PA
7- Fernando de Oliveira – IALA Amazônico.
8 – Flávia Sabrina Lima – MAM/PA.
9 – Ivo de Souza Leal – IALA Amazônico.
10- José Quintero Weir – Indígena Wayuu-Añuu,- Antropólogo-Ativista.
11- Katia Akrãtikatêjê – Cacique da aldeia Akrãtikatêjê – PA.
12- Marcos Vinicius Francisco de Almeida – Comunidade Quilombola do Bracuí – RJ.
13- Maria José Cavalcante – Camponesa – CPT – AL.
14- Miguel Angel AT Mapuche – Indígena Mapuche.
15- Patrícia Santos de Jesus – Mangabeira – Catadora de Mangaba – SE.
16- Paulo Henrique Almeida Andrade – Teia dos Povos Maranhão.
17- Priscila Facina Monnerat – Assentada do Assent. Contestado – ELAA-MST- PR.
18- Silas Borges Evangelista – Agricultor de Guapiaçu – RJ (MAB).
19- Zacarias Ferreira da Rocha – Povos e Comunidades de Fundo de Pasto – BA.
20- Adriane de Andrade – Geógrafa-Ativista – UFPR.
21- Alessandro Peregalli – – Itália / UNAM (México).
22- Alexander Panez – Assistente Social-Ativista – MODATIMA – Chile.
23- Ângela Massumi Katuta – Geógrafa-Ativista – UFPR.
24- Bruno Malheiro – Geógrafo-Ativista – UNIFESSPA.
25- Carlos Walter Porto-Gonçalves – Geógrafo-Ativista – LEMTO/UFF.
26- Claudio Dourado – Antropólogo – Ativista – CPT – BA.
27- Danilo Cuin – Geógrafo-Ativista – LEMTO/UFF.
28- Eduardo Barcelos – Engº Ambiental- Geógrafo-Ativista – IF Baiano.
29- Eraldo da Silva Ramos Filho – Geógrafo-Ativista – UFS.
30- Fernando Michelotti – Agrônomo-Ativista – UNIFESSPA.
31- Julia Ladeira – Pesquisadora-Ativista – LEMTO/UFF.
32- Laiza Lima – Pesquisadora-Ativista – LEMTO/UFF.
33- Luciana Borges – Geógrafa-Ativista – UNIFESSPA.
34- Marlon Nunes – Pesquisador-Ativista – LEMTO/UFF.
35- Pedro Catanzaro da Rocha Leão – Pesquisador-Ativista – LEMTO/UFF.
36- Pedro D’andrea Costa – Geógrafo-Ativista – AGB.
37- Pedro Henrique Rocha – Pesquisador-Ativista – LEMTO/UFF.
38- Ralph Medeiros de Albuquerque – Geógrafo-Ativista – UFPR.
39- Ruth Bautista – Socióloga-Ativista – IPDRS – Bolívia.
40- Tania Gomez– Advogada-Ativista – Plataforma Sur – Colômbia.