3. Geografia dos Conflitos Sociais no Brasil e América Latina

 

    A nova configuração geográfica do capitalismo mundial pós-1960 desencadeou o um intenso processo expropriatório jamais visto na história da humanidade. Em números: do aumento da população mundial em termos absolutos de 3 bilhões e 720 milhões habitantes entre 1960 e 2010, nada mais, nada menos que 67% se estabeleceu em ambientes (mal) denominados urbanos, ou seja, 2 bilhões e 515 milhões desses habitantes se localizaram em cidades. Por outro lado, 1 bilhão e 204 milhões se estabeleceram em ambientes não-urbanos. Em 1960, ou seja, 50 anos antes, 63,1% dos habitantes do planeta estavam nas áreas rurais, contra 32,9% nas áreas urbanas. Em 2010, aproximadamente 53% da população mundial era urbana, contra 47% de rurais. Registre-se que 70% desses urbanos do mundo estão na América Latina e Caribe, na Ásia e na África em ambientes precários que melhor seriam chamados de sub-cidades e não como as cidades-luzes que se anunciam no horizonte evolucionista de matriz eurocêntrica. Não se conhece na história da humanidade um processo tão intenso e extenso de expropriação de camponeses e de populações indígenas, pelo menos à escala planetária.

   Na América Latina/AbyaYala, esse processo expropriatório foi ainda mais intenso, haja vista que do crescimento da população total de 380 milhões de habitantes no período 1960 e 2010, nada mais, nada menos que 368 milhões se estabeleceram nas cidades, sobretudo em suas periferias: ou seja, 96,7% do total do crescimento populacional total se deu nas (sub)cidades contra a proporção de 67% no mundo.

   No Brasil, esses números se mostram ainda mais espetaculares, se é que cabe essa denominação para designar a maior intensidade desse processo expropriatório entre nós: entre 1960 e 2010, a população brasileira total aumentou em 144 milhões de habitantes; a população urbana aumentou em mais de 150 milhões de habitantes, número maior que o crescimento da população total do país no período, passando de 19,5 milhões, em 1960, para mais de 170 milhões, em 2010. Por outro lado, a população rural passou de 35,5 milhões de habitantes, em 1960, para aproximadamente 27,7 milhões em 2010, com uma diminuição não só proporcional, mas também em números absolutos de aproximadamente 8 milhões de habitantes nesses últimos 50 anos. Vivemos um período de desenvolvimento capitalista no campo caracterizado como “uma agricultura sem agricultores”, conforme denominou Miguel Teubal.

    A conflitividade engendrada pelo avanço do capitalismo e pela construção dos Estados territoriais (nacionais?) na América Latina tem sido uma constante. Sem embargo, nas últimas décadas evidenciamos um crescimento da conflitividade a partir da intensificação e aceleração da exploração capitalista dos recursos naturais em um contexto de globalização neoliberal (e mesmo posneoliberal) e reconfiguração da geopolítica mundial, que determina dinâmicas espaciais que invadem as territorialidades existentes dos habitantes rurais, camponeses, indígenas, afroamericanos, comunidades tradicionais, etc.

    A conflitividade imanente do desenvolvimento do Estado moderno/colonial se intensifica em um momento de reconfiguração dos blocos de poder internacional e da geopolítica da América Latina. A região se encontra em um momento decisivo do papel que adquirirá na nova reconfiguração espacial do capitalismo. O crescimento econômico da China e sua demanda de recursos naturais, especialmente agrícolas e minerais, acompanha a onda de crescimento que se deu na região nos últimos anos, justo com a chegada de governos de esquerda vindos das lutas e movimentos sociais. Nesta confluência se desenham dois megaprojetos de integração e desenvolvimento: o Projeto Mesoamericano (antigo PPP – Plan Puebla-Panamá) e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA). Além de serem dois projetos de infraestrutura técnica, contém em si toda uma concepção de sociedade, de civilização, que se impõe sobre os territórios e territorialidades existentes, determinando uma aceleração e aprofundamento das relações capitalistas a espaço onde ainda não haviam chegado, ou não com tanta intensidade.

    Esses processos não ocorrem sem a r-existência dos povos, a partir dos quais surgem movimentos sociais indígenas, camponeses, afroamericanos, de comunidades tradicionais e outros que, a partir da reivindicação de uma territorialidade outra, questionam o Estado territorial nacional e os projetos de integração espacial do capitalismo. Os movimentos sociais de base territorial levantam uma luta política e epistêmica frente ao Estado territorial moderno/colonial. O slogan da terra para quem a trabalha que marcou as lutas pela reforma agrária e contra o latifúndio durante o século passado, se vêem fortalecidas política e teoricamente nas últimas décadas, a partir da entrada em debate da questão territorial levantada pelos movimentos sociais. Novos debates atualizam, enriquecem e complexificam a conflitividade agrária, questionando não somente a repartição de terras, mas, sobretudo o caráter moderno/colonial das relações territoriais no interior do estado, assim como seu modelo de sociedade e sujeito nacional.

    A questão territorial imersa nos conflitos sociais na América Latina, tanto no âmbito da geopolítica latinoamericana, como no âmbito interno dos Estados, se mostra central nos dias que correm. Os caminhos que tomem os conflitos territoriais em curso sinalizarão o caráter das transformações políticas, econômicas, sociais e culturais que afrontará a região nas próximas décadas, em uma complexa imbricação de múltiplas territorialidades em tensão.

 

Pesquisas em andamento:

 1) GEOGRAFIA DOS CONFLITOS SOCIAIS NO CONTEXTO DE NOVAS CONFIGURAÇÕES SÓCIO-GEOGRÁFICAS DA AMÉRICA DO SUL (2000-2019)

 

 

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